“Vestido
de Noiva teve o tipo de sucesso que cretiniza um autor. Parti para
Álbum de família, que é um anti-Vestido de Noiva. O teatro é
mesmo dilacerante, um abscesso. Teatro não tem que ser bombom com
licor.”
(Nelson Rodrigues, em Teatro Completo, p. 22 – Org. S. Magaldi)
(Nelson Rodrigues, em Teatro Completo, p. 22 – Org. S. Magaldi)
“Atacar
faz parte dos meus instintos. Poder ser inimigo, ser inimigo – isso
talvez pressuponha uma natureza forte. Ela precisa de resistência,
por isso ela busca resistência: o páthos agressivo faz parte,
necessariamente, da força, assim como os sentimentos da vingança e
da revanche fazem parte da fraqueza.”
(Nietzsche,
em Ecce Homo)
Ao debruçarmos sobre a obra de Nelson
Rodrigues – ou sobre qualquer outra obra - temos evidentemente um
solo próprio que nos perpassa. Somos brasileiros, logo somos, de
alguma forma, “cristãos”, pois, é esse o solo-imaginário que
domina nossa cultura; mesmo quando se posiciona como “ateu” a
luta de negação se dá contra o hegemônico simbolismo do
Cristianismo. Somos também, da mesma forma, “modernos”, ou seja,
cartesianamente constituídos. Desde cedo nosso modo de pensar é
causalista e dicotômico; somos educados e condicionados pela
doutrina constituída pela divisão e definição “sujeito-objeto”,
pela busca do método ideal, pela determinação da verdade e do
conhecimento através razão. Somos ainda também “freudianos”;
acreditamos ou aderimos, já há algum tempo, as idéias de
inconsciente, traumas, complexos e neuroses pulsionais, determinados
por uma sexualidade reprimida. Aqui também “ser
cartesiano”
ou “ser
freudiano”
pressupõe todas as expressões intelectuais que conciliam, ampliam
ou refutam suas reflexões, e que, muitas vezes, desembocaram em
ideologias ou dogmas. E ainda, por estarmos mais intimamente ligados
ao teatro, somos todos de certa forma “shakesperianos”, pois é
com sua obra que inaugura-se no teatro o que temos como “homem
moderno”, ou seja, do antropocentrismo, da colocação do homem
como ponto de referência das reflexões e da constituição do real.
E,
finalmente – mas sem cronologia, por favor! – somos, mais
originariamente ainda, gregos! Em mito, arte, filosofia e –
fundamentalmente - em linguagem: teatro, música, escultura, psiche,
esquizofrenia, diálogo, idéia, essência, fenômeno, substância,
filosofia, Édipo, logos, teoria, lógica, ética, homérico, fórum,
estética, pragmatismo, ostracismo, escola, política, polêmica,
técnica, método, etc, etc, etc. Como conseguiríamos nos relacionar
fora desse âmbito de linguagem?
Mas
o que está na gênese da nossa ligação com Nelson Rodrigues é o
fato de sermos - tendo a dimensão sociocultural como base - brasileiros.
Isso nos aproxima não apenas em pensamento e ilações intelectivas,
mas em carne e osso. Temos um mundo em comum, uma dimensão
perceptiva que pode ser compartilhada mais intimamente, pois somos
habitados por esse universo de futebol, samba, cachaça, machismo,
boteco, trem da central, carnaval, terreiro, família, igreja,
miséria, malandragem, preconceitos, sacanagem, etc. Jeitinhos e
modos próprios de nossa constituição, nos quais já estamos
inexoravelmente mergulhados. A obra rodriguiana foi concebida a
partir da originalidade desse mundo circundante: ela é, antes de
tudo, brasileira.
É
a partir desse ponto, dessa dimensão de historicidade, que temos a
adaga afiada e corrosiva de Nelson Rodrigues revolucionando e
instaurando uma percepção de mundo até então escondida. Fazendo
aquilo que é próprio do gênio artístico: mostrar - a partir da
aparente banalidade – que há outras formas de interpretar o mundo,
instaurando um novo olhar. Mais que isso: sua obra tem um profundo
caráter de combate, confronto e ruptura, que só as grandes figuras
é dignificado. Para essa tarefa é necessário mais que
inteligência, método ou técnica apurada. Aqui precisamos ter
coragem. Mas coragem em doses homéricas. Aqui - mais que arte,
estética ou inspiração - temos um espírito guerreiro. É nessa
coragem para o confronto aberto e direto - expondo cruamente a
hipocrisia moral - que ligamos o espírito Rodriguiano ao
Nietzchiano.
Um
outro fator que também identifica sua obra ao “pathos
agressivo”
detectado pelo filósofo alemão, é a linguagem inovadora e
revolucionária de sua criação teatral. Nelson Rodrigues antecipa
no Brasil o absurdo de Ionesco e apresenta novas possibilidades de
relação com o espaço cênico. Seus diálogos - considerados pelos
detratadores como banais, chulos e pobres - as personagens comuns,
cotidianas, perturbadas e corrompidas. Temos ainda as concepções de
cenografia, iluminação e encenação que explodem os limites
físicos do palco, a valorização do trabalho de grupo, se colocando
contra a hegemonia do “monstro sagrado”, inventando uma nova
maneira de ver e fazer teatro. Mas a matilha intelectualizada -
ressentida e portadora da “verdade teatral” da época - não
aceitou calmamente sua chegada. Muitos perguntavam: quem é este que
ousa profanar essa sagrada instituição que é o teatro? Com que
autoridade esse senhor vem expor nossas mazelas, recalques e
hipocrisias? Quem lhe deu autorização para estar, aqui entre nós?
Dentro
desta perspectiva os adjetivos de “polêmico”
e “sarcástico”
são, no meu entender , realmente os que melhor definem Nelson
Rodrigues. Os dois termos tem a mesma origem grega; o primeiro vem de
“polemos”
(batalha, combate”) e o segundo
de
"sarx"
(carne) e do verbo daí derivado "sarkázein"
(que significava "arrancar carne"). Esse penetrar nas
entranhas, cortar a carne da sociedade, do mito da boa família
burguesa, de se contrapor ao discurso moral vigente e, ao mesmo
tempo, ser considerado por alguns como conservador e moralista, expõe
essa disposição contraditória e combativa em Nelson Rodrigues.
Em
face disso, a obra de Nelson Rodrigues tem uma profunda exigência
de expressão e desenvolvimento de uma linguagem não verbal, um
exercício de desconstrução do nosso modelo formador, fundado na
razão instrumental. Aqui as estruturas do teatro recitativo e
afetado são balançadas. Talvez seja essa a maior dificuldade para a
encenação das obras rodriguianas, que muitas vezes caem na
banalização estereotipada. Muito mais que texto, fala e compreensão
racional, necessita-se da radicalidade do corpo, pois suas peças
colocam um jogo de linguagem cênica que pressupõe o embate e a
contradição no interior das próprias personagens.
E
é por essa disposição, por esse “pathos”,
que nos debruçamos ao sermos impactados e embriagados por Nelson
Rodrigues. Entendendo “embriaguez”
como o momento de descoberta, encontro e perplexidade diante de um
fenômeno grandioso e inesgotável. Aqui antes da razão calculante e
intelectualizada, é a radicalidade pré-reflexiva da percepção que
nos guia. Ao entrarmos no universo rodriguiano temos então que,
inverter a lógica cristã e deixar a carne se fazer verbo,
confrontando-se então com uma dimensão de humanidade “suja”
e – como ele próprio classificou seu teatro – “desagradável”.
Mas sem aquela postura de vingança e ressentimento em relação ao
mundo.
O
ressentido – como nos colocou Nietzsche – é um tipo decadente e
covarde, pois considera que o mundo deve algo mais que ele merece. O
Ressentido quer dominar tudo e corrigir o mundo - incluindo aqui as
pessoas, que são objetivadas e forçadas a colaborar com seu projeto
de vingança contra a “injustiça” que acredita contra ele ser
cometida. É um tipo altivo e impermeável. Supera em muito o
invejoso. Este pelo menos reconhece algo de bom no outro e deseja
tê-lo pra si. O ressentido não consegue ver nada de bom no outro,
pois o mundo é concebido a partir do seu umbigo. O ressentido quer
escravos e lacaios a sua volta, estendendo tapete vermelho a todo
momento e fazendo suas vontades. O mundo deve a sua “magnânima
figura”. Cobra aquilo que não pode ter, acha que é melhor que os
outros e que é injustiçado. Usa de todos os artifícios para que
suas vontades sejam atendidas. Exige sempre dos outros reverência e
privilégios.
O
ataque de Nelson Rodrigues não tem ressentimento, não propõe uma
correção do mundo. O “pathos
agressivo”, a
fúria no combate,
em sua obra não foi estabelecido por um capricho do “sujeito”,
por um centralismo na razão ou na consciência humana, mas por uma
disposição e relação de mundo constituída através de uma aguda
percepção e acuidade, relacionada ao mundo em que vive. Nietzsche
nos coloca em “Ecce
Hommo”
que e a dignidade do combate está na escolha do alvo; para o grande
guerreiro não interessa “bater em cachorro morto”. É preciso
ser algo reconhecidamente forte e estabelecido, partindo então para
o embate em campo aberto, sem contar com a ajuda de ninguém. Ele
sabe da grandeza de sua tarefa e da contingência de que não será
apoiado em sua empreitada. Também, como nas grandes causa, não se
volta para pessoas em particular, mas para instituições, idéias e
preconceitos. Se algumas vezes pessoas foram atacadas é por
representarem ou se colocarem na linha de combate. E - como bem
nos alertou Shakespeare em seu Rei Lear - não é sensato se colocar
“entre
o leão e a sua fúria”.
É
justamente esse espírito que encontramos ao nos depararmos com o
fenômeno Nelson Rodrigues. Ao expor – sem autorização prévia -
o submundo hipócrita da sociedade e seu aparelho repressivo, as
alcovas dos desejos e taras disfarçadas, trouxe à tona uma dimensão
do coletivo humano que até então era velado e proibido em nome da
“moral e dos bons costumes”. Considero ser essa a grande boa nova
contida em sua obra, mas não desqualifico nem desconsidero outras
perspectivas. Usando uma analogia bem ao gosto rodriguiano, tenho
como pressuposto que o bom jogador é aquele que – para aumentar
seu campo de visão - percebe o momento certo de sair da “pequena
área”.
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