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Um arquiteto da barbárie

A percepção demasiada humana dos devotos da procissão marítima de São Pedro deste ano captou - com maior sensibilidade e profundidade - aquilo que o desenho no papel já anunciava: o Cais das Artes é um monstrengo alienígena invadindo a Baía de Vitória. A dispepsia estética gerada na comunidade de pescadores - desabrigados agora de sua paisagem afetiva – é algo que merece pelo menos ser refletido.


Os arquitetos ditos modernos - linha de filiação de Paulo Mendes da Rocha - carregam no bolso com devoção inabalável uma lente Niemeyertiana: enxergam um Planalto Central vazio em todo espaço a ser ocupado. Eles trazem em suas concepções colonizadoras aquela postura avassaladora e violenta de conceber estruturas que tem a obrigação de instaurar “um mundo novo”, no espaço pobre, inválido e inóspito onde são edificadas. A relação afetiva, a visão simbólica e adesão existencial do conjunto humano que interage com esse espaço não existem. Quando muito essas dimensões são avaliadas - pelo intelectualismo solipsista moderno desses arquitetos - como sendo fruto de uma casta inferior, de uma gente sem capacidade para compreender as arrojadas linhas modernas e seus promissores efeitos.


Esse tipo de arquitetura fria e anacrônica, que desconsidera a interação com o espaço, é denominada por seus críticos de barbarismo. Existe uma anomalia na gênese dessa arquitetura referenciada como “moderna”: ela sofre de agorafobia; sua sistematização esmaga a possibilidade do relacionamento do humano com suas estruturas, apequenando essa dimensão diante da imponente monstruosidade retilínea edificada. Essa visão arrogante é constitutiva do Cais das Arte, determinando uma geometria rígida e deserotizada, sem relação com o ambiente, em consonância com a vaidade concreta e o hermetismo arrogante da aristocracia de plantão que engendrou o projeto.


O arquiteto Paulo Mendes da Rocha cedeu sua reputação e olhar modernoso para degradar o espaço vivente da Capital dos Capixabas com uma estrutura anacrônica e desintregadora de poética. A consciência bárbara – presente no arquiteto moderno – determina a percepção da coisa concebida como possuindo absoluta primazia em relação à percepção do espaço afetivo. O objeto novo, a edificação moderna, trás a cultura nova, que se traduz como cultura verdadeira e inovadora; aquela que deve ser inseminada e disseminada para o povo, com o objetivo de purificar e elevar o nível cultural das pessoas - no caso capixabas. Em sua perversa analítica, essa consciência estrutural e estruturante, apreende a cultura existente como inferior ou indigna de ser levada em consideração. Não vigora aqui, em nenhum momento, o reconhecimento que cultura é construção de uma coletividade em relação criativa e significativa com seu espaço. Se há sentidos simbólicos e afetivos eles devem ser, preferencialmente, destruídos.


O complexo de barbarismo arquitetônico se concretiza com suas paquidérmicas proporções: o investimento monstruoso nesse projeto se contrapõe aos ínfimos valores destinados ao longo dos anos ao fomento cultural local. A construção humana dos capixabas, expressada radicalmente por seus artistas, continua sendo vista pela elite dirigente como sub-cultura de uma sub-raça; teremos então que modelar nossa percepção e nosso modo de expressão a partir do que vem de fora. Eles construirão um Cais das Artes e nós continuaremos a ver navios: estamos todos à margem do complexo.








Comentários

Anônimo disse…
Pensei que somente eu achasse aquele projeto um absurdo...
Manouchk disse…
Faz tempo que não passo ver o Cais das Artes mas do jeito que você está descrevendo ele, eu me lembrei do hotel que Oscar Niemeyer projetou lá em Ouro Preto. Aquilo foi uma negação das caraterísticas locais. Hoje em dia já deveria ter passado essa vontade de modernidade absoluta. Se ainda precisamos de modernidade, a necessidade de resgatar nossa história, nossos raízes se tornou talvez mais importantes.

Emmanuel M. Favre-Nicolin
Blog Vitória Sustentável
http://vitoria-sustentavel.blogspot.com

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