Pular para o conteúdo principal

O Espírito de Circe

Na Odisséia grega, narrada por Homero, existe a ação de Circe, uma feiticeira poderosa e louca que aprisiona seus inimigos mais fortes e transforma os outros em porcos, que depois brigam entre si pelas migalhas jogadas como alimento. O páthos de Circe não aniquila, mas assola, causa desolamento; e aqui desolar é pior do que aniquilar; a desolação é o que institui o deserto e o desolamento e, mantendo o existente, acaba com a possibilidade de CRIAR e exclui a vigência da LIBERDADE.

É isso que denomino aqui de “Espírito de Circe”, do qual está eivado o modus operandi do Governador do Estado do Espírito Santo, no que se refere, principalmente, ao tratamento e a consideração destinada aos artistas locais, tendo como exemplo mais contundente o estardalhaço midiático para o lançamento desse caquético “Edital da Cultura”, que considero degradante e vergonhoso diante da importância e dimensão econômica do nosso Estado no quadro nacional. O Governador atual - envolto em uma aura de ex-militante estudantil de esquerda e de político “jovem e moderno”, além de um sorriso forçado no canto da boca – repete as mesmas práticas coronelistas e oligárquicas que a muito assolam o Espírito Santo.

Para não ser colocado pelos detratores como mais um discurso panfletário - originado de um artista ressentido - invoco os deuses da matemática para demonstrar, com a frieza dos números, em que pressupostos esta fundamentada minha indignação e minha afirmação, com respeito a esse inefável “Edital da Cultura”, lançado no último dia 27 de Março, no polido e asséptico Palácio do Governo.

O Espírito Santo, segundo dados do IBGE, é praticamente hoje a 6ª Potência Econômica do Brasil, e devemos isso a nossa privilegiada geografia e recursos aqui existentes; além, é claro, do trabalho e esforço do povo capixaba, não sendo então obra exclusiva de nenhum “Messias Iluminado”. Em 2008, segundo dados da Receita Federal, mandamos mais de 10 bilhões de Reais em impostos para a boca do Leão. Fazemos ainda parte do seleto grupo de Estados com renda per capita acima da média brasileira. O índice capixaba é de cerca de R$ 15.236,00 por habitante (com viés ascendente), enquanto a média brasileira é em torno de R$ 9.200,00.

Para situarmos o vergonhoso, aviltante e míope tratamento que este governo dá ao Setor Cultural, como exercício didático, tomo de empréstimo o exemplo de Minas Gerais. Comparativamente a economia capixaba equivale a cerca de 30% da mineira, sendo que em 2008, somente através da “LEI ESTADUAL DE CULTURA” o Governo Mineiro liberou cerca de 100 milhões de reais para produção artística. A nossa Lei correlata foi sancionada em 2000 e até hoje não saiu do papel; apesar de achar o modelo de “Fundo de Cultura” mais legítimo e além de ser a tendência apontada pelo Sistema Nacional de Cultura, que creio dever ser seguida; mas citei esse fato aqui pois exemplifica bem - de modo crasso - o descuido, o descaso e o desinteresse da galharda Classe Política Capixaba com a Cultura local.

Façam vocês agora as contas para saber quanto seria disponibilizado aqui no Espírito Santo diretamente para o “Setor Produtivo Cultural” (como preferem os tecnicistas), se a lógica comparativa econômica fosse aqui aplicada.

O mais estranho nisso tudo – e que deve ser devidamente esclarecido – é que no site da CMN (Confederação Nacional de Municípios), numa pesquisa de gastos com Cultura no Brasil, consta que o Espírito Santo aplicou em 2007 (ano em que sequer havia esse minguado Edital), mais de 48 milhões no Setor Cultural (mesmo estando esse valor percentualmente abaixo, por exemplo, do Piauí - pior renda per capita do país, cerca de 4 mil reais).

As perguntas que brotam diante disso - e que não querem se calar - creio ser de fácil dedução por todos: onde foi aplicado esse dinheiro? Que projetos de difusão e produção Cultural (como consta da pesquisa) foram agraciados por esses recursos? Quais foram os critérios de escolha?

Mesmo dentro desse montante - “disponibilizado” para a produção cultural do Estado em 2007 - o que foi destinado ao esquálido “Edital da Cultura” lançado no ano seguinte (2 milhões de reais) equivale a pouco mais de 4% do total indicado pelo CNM.

Com a radical cegueira que nos assola não estamos com a visão impedida; pode-se ao contrário se ver tudo, só que reduzido e condicionado a formas pré-concebidas; a cegueira radical só nega o essencial do movimento que determina o ser das coisas. Parece então que, enquanto pairar essa cegueira radical, estaremos sobre a vigência do pathos da feiticeira louca. Então, alegres, obedientes e eufóricos brigaremos pelas migalhas, como se saboreássemos o banquete dos escolhidos.


“O deserto cresce; ai de quem guarda dentro de si desertos!”
(Nietzsche, em Ditirambos de Dioniso)

Comentários

Zeroglota disse…
Parece que não queremos sair da festa em que comemorávanos o fim da ditadura.
Tantos anos depois continuamos agarrados a esta conquista. alienados,de olhos vendados,
enquanto nos imaginamos livres pra falar o que ninguém parece querer escutar,a desgraça se instala devagar!

Postagens mais visitadas deste blog

Angústia, Desespero e Desamparo no Existencialismo de Sartre

No ensaio “O Existencialismo é um Humanismo ” o filósofo Jean-Paul Sartre busca esclarecer e  fazer uma defesa - enfatizando seus principais pressupostos - de sua proposta existencialista exposta na obra “ O Ser e o Nada ”, que foi duramente atacada tanto pela ortodoxia cristã, como pelo fundamentalismo ateu-marxista. Os cristãos o acusam de - ao negar a essência divina como fundante do humano – promover uma visão gratuita, sórdida e angustiada da vida, esquecendo das belezas do viver, ou, em suas palavras, abandonando “o sorriso da criança”. Já os marxistas indicam que Sartre propõe uma espécie de “imobilismo do desespero” , onde o fechamento das possibilidades da ação solidária consolidaria uma filosofia de caráter contemplativo, de fundo burguês. Os dois lados, segundo Sartre, partilham da certeza de que o Existencialismo, por ter sido gerado tendo como base o subjetivismo Cartesiano, promove o isolacionismo humano, se configurando então como uma doutrina sem ética e que promoveria

Berimbau 2 x O Acadêmico

Em maio último Antonio Dantas, coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ao tentar justificar o baixo conceito alcançado no ENADE, afirmou que isto é devido “ao baiano tem baixo Q.I”. Afirmou ainda categoricamente que “o berimbau é um instrumento prá quem tem poucos neurônios , pois possui somente uma corda .” A retórica empolada e cientificista de Dantas é um recurso largamente utilizado em nossos dias para justificar e explicar fatos e fenômenos em geral; e por força ideológica e midiática, ganha comumente contorno de verdade absoluta e inquestionável. A fala do Dr. Coordenador revela um ranço de pureza étnica vigente em nossa “elite”, que ainda determina os rumos do país e mantém firme nosso aviltante quadro de desigualdade e segregação social. O “especialista” é o maior porta voz e defensor da estrutura dominante. Mas o que mais pode estar na raiz desse discurso? Para tentar entender um pouco mais claramente essa questão, deixaremos de lado

O que é isso, o Brincante?

Considera-se o artista Brincante como um legítimo representante da “cultura popular”. A separação entre “cultura” e “cultura popular” é algo que cristaliza vários preconceitos. Distingue a última como um tipo de “fazer” desprovido de um “saber”, ou uma coisa “velha”, fruto da “tradição”, resíduo de uma gente em extinção. O termo “cultura popular” direciona para o passado, para um espaço perdido, para uma ruína que ainda resiste diante do fim inexorável. Já o que designa “cultura” - em contraposição a sua designação como “popular” - aponta para um saber atualizado, abarrotado de conhecimento comprovado e necessário; nessa acepção estamos “antenados com o presente” e “preparados para o futuro”. Na maioria das vezes quando ouvimos dizer que “fulano tem muita cultura”, está se referindo a alguém que adquiriu títulos, escreveu livros ou possui notoriedade por sua “produção intelectual”. Não se trata aqui de uma “cultura qualquer” que se apreende ordinariamente no meio da rua. Esse “suj