Pular para o conteúdo principal

Gilbert Chaudanne: o metafísico de essências carnais

Há muito se tenta entender a pintura a partir de apriorismos psicológicos ou teorias contemplativas e se esquece do corpo. Não se considera como constituinte a radicalidade selvagem da carne humana, que se entrega num jogo de contração e distração ao se lançar no abismo da criação, emprestando sua dimensão perceptiva e seus movimentos vicerais ao desvelar-se da obra. Mas aqui o nascimento da obra como tal, também é sempre um re-nascimento do homem, um sempre buscar-se e reapresentar-se ao mundo. Existe no ato de quem pinta um tocar e ser tocado e também, paralelamente, um sentir e ser sentido. Aqui a divisão epistemológica moderna - do “sujeito” que compõe e do “objeto” que é composto - não vigora.

Se o artista constitui algo para se olhar, não tem como evitar que - numa ampliação de perspectiva - também é olhado por ela. Se o homem se faz na obra e correlatamente a obra está inundada por suas “essências”, não podemos deixar de considerar sua corporeidade. E encontramos essa contundência significativa da carne, do humano onde ele mais humanamente é homem, no fazer e refazer-se de Gilbert Chaudanne através de sua pintura.

Em suas obras os elementos de cor, luz, espaço, profundidade, etc., não são um algo “em-si” que se juntam logicamente; e menos ainda objetos ou assertivas cientificas que, equacionados e dominados, estarão disponíveis para atender prontamente ao poder instrumental do homem; também não são frutos de uma organização racional que obedecem a uma suposta metodologia. Eles se constituem como entes imagéticos que se apresentam para brincar e desafiar o artista.

E Chaudanne brinca, desperta e aceita o desafio, restituindo-se e revigorando-se. Esse interesse dirigente do corpo contra a tela - levando a tinta camada a camada, gesto a gesto – numa dança que mais tarde se constitui em “obra”, trás também alegrias e dores, fatos e sentimentos, indagações e contradições que foram registradas ao longo do tempo por esse corpo efeitual. Esta dimensão determina a dinâmica de retribuição e ampliação do sentido da vida que comanda o fazer de todo artista.

Podemos inferir que, nessa perspectiva, o sentido originário do termo “entusiasmo” nos legado pelos gregos – ter um Deus dentro de si – é a própria vigência do ato criador. Se nos constituímos pela imaginação e pela admiração diante do mundo, ela só nos é revelada quando vemos as coisas e nos interessamos por elas, quando nosso corpo é despertado para se apresentar e constituir-se criativamente através dessa relação.

O artista busca a técnica como a criança o brinquedo: para quebrá-la e remontá-la como novidade afetiva. Assim como na criança não acreditamos haver uma estrutura pré-operatória que dispara um “motor criativo” – como determina a epistemologia moderna - também no artista vigora essa exigência da carne, do movimento de aproximação, do interesse mútuo para algo que ele ainda não determinou e que está ainda para além de um esquema interpretativo, mas que só pode realizar-se dentro dessa ordinária mundaneidade. É claro que tanto na criança como no artista existe um visar; mas é uma visão sagrada e devoradora, que se constitui para além dos meros fatos visuais e que se amplia no contato, envolto por um turbilhão de volúpias, suores, desejos, narcisismos e gestos; estamos aqui perpassados pela vigência afetiva corpórea, que anseia significativamente sua aderência ao mundo.

Ao toque mágico do imaginário e desse fenômeno de espanto diante do mundo, o artista sente e desperta; e assim como ele, também outros corpos serão afetados e despertados no contato com sua obra. Se o acontecer chaudanniano, seu vigor, despertar e perguntar constante, se perfaz e se apresenta renovadamente em suas Madonas, e se ainda mais originariamente, ele amplia através delas sua corporeidade - embebida de afetos, mitos, gestuais, movimentos e uma tonalidade afetiva pulsional - eu também por elas sou tocado. Através disso eu também sou lançado para a espacialidade afetiva do corpo, que eclode metafisicamente num universo de múltiplas significações.

Diante das obras de Chaudanne as categorias que classicamente temos se misturam para ampliar esse espaço afetivo e significativo do corpo relacional: eu vejo e sou visto, toco e sou tocado. Será então necessário suspendermos as indicações dos manuais de psicologia e das metodologias cognitivas, ampliando o horizonte perceptivo, para sermos afetados, impactados e humanizados pela irracionalidade constitutiva da metafísica do corpo chaudanniano.

Comentários

marilda disse…
Lendo este texto sobre o poder da obra de Chaudanne, tive a exata sensação de estar diante das obras do artista Fraga, humanamente homem que, tocado e desperto na sua integridade, beleza e leveza corpo/alma/mente, pelas obras de Chaudanne, por afeto se toca, se entrega e se revela por dentro/fora destas, agora transfiguradas, pois, na sua própria criação. Como são belas as obras de Chaudanne!!!
Valeu, Fraga!!! beijo. Marilda.

Postagens mais visitadas deste blog

Angústia, Desespero e Desamparo no Existencialismo de Sartre

No ensaio “O Existencialismo é um Humanismo ” o filósofo Jean-Paul Sartre busca esclarecer e  fazer uma defesa - enfatizando seus principais pressupostos - de sua proposta existencialista exposta na obra “ O Ser e o Nada ”, que foi duramente atacada tanto pela ortodoxia cristã, como pelo fundamentalismo ateu-marxista. Os cristãos o acusam de - ao negar a essência divina como fundante do humano – promover uma visão gratuita, sórdida e angustiada da vida, esquecendo das belezas do viver, ou, em suas palavras, abandonando “o sorriso da criança”. Já os marxistas indicam que Sartre propõe uma espécie de “imobilismo do desespero” , onde o fechamento das possibilidades da ação solidária consolidaria uma filosofia de caráter contemplativo, de fundo burguês. Os dois lados, segundo Sartre, partilham da certeza de que o Existencialismo, por ter sido gerado tendo como base o subjetivismo Cartesiano, promove o isolacionismo humano, se configurando então como uma doutrina sem ética e que promoveria

Berimbau 2 x O Acadêmico

Em maio último Antonio Dantas, coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ao tentar justificar o baixo conceito alcançado no ENADE, afirmou que isto é devido “ao baiano tem baixo Q.I”. Afirmou ainda categoricamente que “o berimbau é um instrumento prá quem tem poucos neurônios , pois possui somente uma corda .” A retórica empolada e cientificista de Dantas é um recurso largamente utilizado em nossos dias para justificar e explicar fatos e fenômenos em geral; e por força ideológica e midiática, ganha comumente contorno de verdade absoluta e inquestionável. A fala do Dr. Coordenador revela um ranço de pureza étnica vigente em nossa “elite”, que ainda determina os rumos do país e mantém firme nosso aviltante quadro de desigualdade e segregação social. O “especialista” é o maior porta voz e defensor da estrutura dominante. Mas o que mais pode estar na raiz desse discurso? Para tentar entender um pouco mais claramente essa questão, deixaremos de lado

O que é isso, o Brincante?

Considera-se o artista Brincante como um legítimo representante da “cultura popular”. A separação entre “cultura” e “cultura popular” é algo que cristaliza vários preconceitos. Distingue a última como um tipo de “fazer” desprovido de um “saber”, ou uma coisa “velha”, fruto da “tradição”, resíduo de uma gente em extinção. O termo “cultura popular” direciona para o passado, para um espaço perdido, para uma ruína que ainda resiste diante do fim inexorável. Já o que designa “cultura” - em contraposição a sua designação como “popular” - aponta para um saber atualizado, abarrotado de conhecimento comprovado e necessário; nessa acepção estamos “antenados com o presente” e “preparados para o futuro”. Na maioria das vezes quando ouvimos dizer que “fulano tem muita cultura”, está se referindo a alguém que adquiriu títulos, escreveu livros ou possui notoriedade por sua “produção intelectual”. Não se trata aqui de uma “cultura qualquer” que se apreende ordinariamente no meio da rua. Esse “suj