“Os
homens construíram uma escada
prá
chegar até Deus,
Não
viram que
Ele
estava ali do lado,
ajudando
a construir a escada”.
(Mario Quintana)
Na constituição e construção do “ser do ator”, entre muitas necessidades, deve-se também sempre se buscar desenvolver um olhar de novidade e aprendizagem em relação ao mundo que nos circunda. Muitas vezes, talvez pela repetição do convívio e pela força do costume, estabelecemos um sentido fixo em relação ao nosso espaço e por tabela às pessoas próximas, ao que somos e ao que fazemos.
O maior aprendizado para um ator pode estar nas suas vivências. Assim, desenvolver uma atenção receptiva, um olhar de reconhecimento e acolhimento em relação ao “Outro”, no sentido de observar, perceber e captar os modos diversos de expressão humana (os olhares, os gestos, os sotaques, as expressões como um todo), se constitui no mesmo nível de importância de outras práticas, dos exercícios, métodos e vivências orientadas a partir de uma fundamentação teórica e técnica, além de se configurar como uma postura ética de reconhecimento e consideração pelo "Outro".
O ator, em sua constituição, é alguém que necessita de modo radical desenvolver o sentido de “atenção e percepção”, buscando “captar e incorporar” as diversas nuances que constituem os arquétipos humanos, ou seja, as múltiplas e ricas formas que nós humanos desenvolvemos - em nossa diversidade cultural - como sistema de linguagem e relação com o mundo. O olhar, o gesto, o tempo, a sincronia e afinidade com quem se contracena, o andar que busco, etc., se constituem numa busca constante e fundamental para o fazer cênico; podemos talvez (e muito recorrentemente isso ocorre) “aprender” algo fundamental para a nossa prática cênica com alguém que por acaso vemos, esbarramos e conversamos fortuitamente na rua. Mas para se captar isto faz-se necessário se estar atento e receptivo.
Também, evidentemente, é de fundamental importância refletirmos sobre nossas próprias emoções e buscarmos também nos relacionarmos com outras referências que nos estimulem a nos confrontarmos e conhecermos mais sobre nossos próprios “processos emocionais” que, da mesma forma, são vastos, complexos e significativos; o que necessariamente nos propõe uma dialética do “EU” com o “OUTRO”, uma dimensão fenomenológica intersubjetiva. Isto pode vir à tona também, por exemplo, quando ouvimos uma história, quando lemos um romance, quando ouvimos uma música ou quando vemos um vídeo.
O cuidado e alerta importante aqui - para nos colocamos diante de nossos processos emocionais - é saber o quanto estamos preparados para esse confronto com lembranças que que dependendo do que representam podem ser desagradáveis e com efeitos ainda não totalmente “resolvidos” em nós ("resolver" muitas vezes se traduz em "reconhecer"), que necessitam por isso de tempo e abrangência maior e, se for o caso, pode se fazer necessário buscar o auxílio profissional adequado. É bom frisar, para que tenhamos clareza e serenidade diante deste fato, que é muito comum que ocorra essa necessidade, é um fato humano ou como diria Nietzsche: “demasiado humano”. Apesar de vermos muitas vezes, em orientações formativas para atores, muitas falas e ordens de que “temos que perder nossos medos e abrir nossas mentes”, de modo algum devemos negligenciar e sermos irresponsáveis com nossa dimensão emocional e afetiva; ou seja, não devemos nos deixarmos levar, não devemos nos violentarmos (e do mesmo modo não fazê-lo com o “Outro”) obedecendo certas falas e práticas “formativas” propostas, que não levam em consideração essa dimensão intrínseca ao ser humano em seu “se fazer” no mundo.
Acredito que as vivências citadas, com o devido zelo, cuidado e discernimento, nos lançam a perspectivas e universos perceptivos diferentes, dando a oportunidade de interagirmos, compartilharmos, refletirmos e aprendemos também, pois há aqui uma transferência de algo que nos confronta e nos faz pensar sobre nossas emoções, relações e afetos, abrindo possibilidade para desenvolver uma compreensão sobre os sentidos que damos as experiências que temos, relacionando-as com nossas memórias e modo de ser. Mas, para se perceber isso, faz-se necessário estar atento e receptivo.
Este nunca será um processo acabado, com um “fim calculado e determinado”, com uma pretensão de se ter um produto objetivado para se guardar em alguma “gavetinha da certeza”: é um processo contínuo, árduo, incessante e revigorante da prática e do interesse do ator e de nós mesmos, que nos constitui enquanto “ser vivente”, que se torna imperativo categórico para quem tem a arte da encenação como paixão, interesse e dimensão essencial da sua existência. Não se quer apontar aqui para uma visão dualista (divisão corpo/mente), ou ainda mecanicista e tecnicista de “evolução” ou “progresso” (categorias muito usadas no meio corporativo produtivo mas que vejo como inadequadas nesse processo), mas sim para uma dimensão de ampliação de perspectivas éticas e afetivas, de um horizonte relacional de reconhecimento, de incorporar e acolher expressões e impressões, de uma visão totalizante da nossa corporeidade que fundamenta radicalmente nosso “ser e estar no mundo”, pois toda vida que vivemos, todas as experiências que temos, mesmo as que inicialmente se apresentem como as mais terríveis e traumáticas, fazem parte da nossa aventura e da nossa constituição como seres humanos. Talvez o personagem que buscamos compor esteja mais perto de nós do que imaginamos.
Mas, para se ver isso, faz-se necessário estar atento e receptivo; ou seja, aberto e lançado ao mundo da vida em suas múltiplas dimensões, sentidos e perspectivas.
(Fraga Ferri é ator e diretor - DRT/RJ: 46.440/Graduado em Filosofia/Pós-Graduado em Docência Superior)
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