Definitivamente
“Caos” não é um espetáculo para "amadores": é para quem já
transcendeu a barreira da puerilidade, para quem tem disposição e
coragem – no sentido existencial da palavra - para perceber e se
confrontar com as neuroses e absurdos do mundo em que vivemos.
A
persistente, indócil e consistente “Cia In Pares” traz com esse
espetáculo uma proposta inquietante, instigante, incomodante e
visceral em todos os aspectos. Em sua presentificação radical a
corporeidade provoca um encontro radical que desvela, muitas vezes,
as faces degradadas da nossa própria existência: a vida
condicionada, comprimida, intoxicada e escravizada por um sistema
indiferente às condições de vida humana e seu espaço vivente.
Dentro de um contexto cultural como o nosso hegemonicamente
racionalista e, em face do momento político que atravessamos (reacionário e sectariamente moralista) as narrativas simbólicas do
corpo – com exceção das com apelo à sexualidade gratuita - ainda
são muito pouco difundidas e compreendidas, daí que uma
proposta como esta ganha contornos ainda mais amplos e
significantes.
A
elaborada, ampla e criativa arquitetura cênica desenvolvida pelo
coreógrafo Gil Mendes, em processo colaborativo com os bailarinos do
grupo, nos trouxe uma arte atenta, insatisfeita, indignada e - ao
mesmo tempo - densa, vasta, poética. Ao expor a submissão,
aprisionamento e inquietação dos corpos, fato que as pessoas em
geral tem muita dificuldade em perceber cotidianamente – entupidas
e entorpecidas que estão pela repetição do trabalho, pelas
medicações paliativas e diversões superficiais – o espetáculo
nos mostra o quanto temos que refletir e agir se quisermos enfrentar
essa realidade.
O
seis bailarinos – Mauro, Lucciano, Cyntia, Poti Ara, Patrícia e
Dielson – são sínteses orgânicas das nossas angústias,
depressões e desesperanças. A perspectiva assimétrica e insolvente
dos corpos em contraposição e combate direto com a paisagem sonora
construída por Wanderson Lopes – desvelados sutilmente pela
iluminação concisa de André Stefson – são projeções carnais
da nossa cotidiana e insana indolência, da nossa complacência e
quietude diante do absurdo e da violência que, diariamente, nos
habituamos a aceitar.
Nesse
contexto, em sua abrangência significativa, é que a dimensão
estética de “Caos” já traz consigo, para além de uma mera
reflexão, uma cobrança ética e política: de como poderemos
superar esse “caos” do doutrinamento, prisão e barbárie, e
construir um caminho para aquele outro “Caos”: da dignidade,
respeito e vida humana criativa.
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