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Nietzsche e a morte de Deus

Existe uma crença popularmente disseminada que Nietzsche teria proclamado “a morte de Deus”. Talvez por ser um pensador muito “lido e interpretado” na contemporaneidade os equívocos gerados também o acompanham na mesma proporção da “popularização” de seus escritos. Mas se não foi Nietzsche, como é largamente difundido, quem então teria cometido o “assassinato de Deus”? Ao que se referia Nietzsche quando escreveu “Deus está morto” através de um personagem enlouquecido? É sobre essa questão que refletiremos. É na sua obra “A Gaia Ciência” (1882) que aparece este anúncio, mas precisamente nos aforismos 108 e 125 do Livro II e 343 do Livro IV. Temos como referência maior e mais comumente difundida o aforismo 125 – intitulado de “O Insensato” - que transcrevo parcialmente abaixo:

“Nunca ouviram falar desse louco que acendia uma lanterna em pleno dia e desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: “Procuro Deus! Procuro Deus!” – Como havia ali muitos daqueles que não acreditam em Deus, seu grito provocou grande riso. “Estava perdido” – dizia um. “Será que se extraviou como uma criança?“ – perguntava o outro. “Tem medo de nós?”. “Embarcou? Emigrou? – Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. “Para onde foi Deus” – exclamou – “É o que vou dizer. Nós o matamos – vocês e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? (...)
                                                                          (A Gaia Ciência, aforismo 125)

Vê-se claramente que o personagem - ao indicar a responsabilidade do assassinato de Deus - aponta para uma coletividade, na qual também ele próprio se inclui; identificamos então que Nietzsche está perpassado pelo pensamento cultural Europeu, no ápice do movimento iluminista, na vigência plena do racionalismo e do cientificismo instrumental, ou seja, do que temos hoje relacionado como “Modernidade”. A ascensão da ideologia moderna determina a autonomia racional do homem e da supremacia da ciência como fundamento absoluto das verdades do mundo. O edifício racionalista moderno - que começou a ser erguido por Descartes - consolidou-se com a propagação das inovações das ciências nas teorias de Galileu, Newton, Laplace e outros.

É clássica e representativa da arrogância cientificista, a resposta de Laplace dita a Napoleão Bonaparte ao entregar sua obra “Mecânica Celeste” e ser questionado pelo imperador porque não havia citado Deus em seus escritos: ”Não senti necessidade dessa hipótese, Senhor”, teria respondido Laplace ao Imperador. Também Kant, ao fundamentar a estrutura crítica da Razão, exclui a metafísica do âmbito do conhecimento. Na esquematização epistemológica kantista as questões relativas à existência de Deus e imortalidade da alma não poderiam ser abortadas e tocadas na esfera do entendimento; ou seja, a metafísica jamais poderia fundamentar alguma noção válida de conhecimento. Kant afirma que não tínhamos condições de tendo como instrumento a Razão, determinar condições e possibilidades das questões metafísicas; na sua visão elas seriam apenas uma furtiva e imaginativa necessidade humana.

A última grande estocada nas significações divinas talvez tenha sido dada pelo Positivismo de Auguste Comte. A doutrina cientificista construído pelo filósofo francês coloca o essencialismo metafísico e a dimensão sagrada como estágios inferiores da formação humana. Para Comte a maioridade do homem, o grau supremo de evolução da humanidade, tem seu ápice com a Ciência; os estágios anteriores seriam um balbuciar, uma fase ainda infantil que finalmente agora seria superada pelo instrumentalismo matemático científico emergido na modernidade.


Diante desse contexto e seus efeitos, Nietzsche observa que o projeto racionalista iluminista – iniciado com a dúvida metódica cartesiana – é de efetuar uma radical ruptura com o modelo político, filosófico e religioso vigente, pretendendo interpretar o mundo unicamente a partir da razão humana. A “Aufkaerung” (esclarecimento, iluminismo) está posta sob a primazia absoluta da racionalidade humana e através do racionalismo cientificista deve romper com tudo que esteja posto pela tradição. É inequívoca a intenção iluminista de combater e destituir o poder determinado pela religião em suas diversas formas e colocar a Razão como legitimadora de tudo.

Nas palavras ditas por seu personagem sobre Deus – “Nós o matamos – vocês e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos!” – Nietzsche está constatando que o homem ocidental, modernamente constituído em sua hipertrofia racional, é que determina a tão propagada “morte de Deus”. Esse fato é inseparável e se constitui num efeito intrínseco do movimento histórico do ocidente moderno coroado com o cientificismo. A Razão não admite qualquer tipo de sujeição, não se curva a soberanos, não admite qualquer tipo de relação de servidão; nesse contexto estar sob os desígnios de um “deus” é estar sob uma sujeição. Como indicou Laplace, o homem de posse dos instrumentos científicos não necessita de uma hipótese divina para fundamentar suas certezas e sua condição existencial. Nietzsche enxerga também que, depois que se inicia, esse processo de absolutização instrumentalizada pela Razão é incontrolável, não poderá mais de modo algum ser detido.


Com “a morte de Deus”, a cultura europeia tende a ser converter para um novo tipo de crença fundado na racionalidade de fundo matemático que se configura - na percepção nietzscheana - em um novo tipo de niilismo, pois nega a criatividade e a dimensão imaginativa do homem, suas possibilidades artísticas e criadoras. Na nova constituição de valores verdadeiramente aceitos, imposta pelo cientificismo, somente o que possui uma correlação e uma aferição estatística matemática recebe o aval de legitimidade. Por isso em seus escritos - na mesma proporção à moral judaico-cristã - esta presente uma crítica contundente ao emergente domínio absoluto e indiscutível da Razão.

“... ocorre o mesmo com essa crença com que satisfazem hoje tantos sábios materialistas que acreditam que o mundo deve ter seu equivalente e sua medida no pensamento humano, na avaliação humana, “mundo de verdade”, do qual se poderia finalmente aproximar com o auxílio de nossa pequena razão humana, bem grosseira. – Como? Queremos realmente rebaixar a existência a um exercício de cálculo, a uma pequena tarefa para matemáticos?“
                                                                       (A Gaia Ciência, aforismo 373)

Com a constatação que na cultura europeia acontece a “morte de Deus” e o advento da crença absoluta na Razão - condicionada pela instrumentalização operante do cientificismo - Nietzsche já prevê um movimento em direção a sociedade de mercado e legitimação de um direcionamento ao consumo, que podemos constatar nos dias atuais. Essa obsessão pelo comprar e a relação neurótica com o tempo determinada principalmente pela cultura capitalista norte-americana - já era visualizada por Nietzsche:


“Há uma selvageria totalmente índia, particular ao sangue dos peles-vermelhas, na maneira como os americanos aspiram ao ouro; e seu frenesi do trabalho – o verdadeiro vício do novo mundo – já começa a contaminar a velha Europa, a torna-la selvagem, ao propagar uma falta de espírito de todo singular. Agora se tem vergonha do repouso; parece que se morde os dedos ao pensar em meditar. Reflete-se de relógio na mão, mesmo quando se está almoçando, com um olho no andamento das bolsas de valores – vive-se como alguém que, sem cessar, tivesse medo de “deixar de fazer nada” – esse princípio também é uma corda apropriada para estrangular todo gosto superior.”
                                                                           (A Gaia Ciência, aforismo 329)

Para não desembocarmos nesse “niilismo do consumo” Nietzsche aponta que temos que nos constituir num “Ubermensch” , num homem superior, num além-homem do homem-moderno, que agora se encontra órfão pela morte de Deus e agarrado a tábua de certezas da tecnociência. O que temos aqui nietzscheanamente colocado como esse “além do homem” moderno - que a péssima tradução “super-homem” embota - é a elevação de uma coragem alegre e uma criativa afirmação diante da vida. Para enfrentar de frente a existência e sua dimensão de finitude sem valores extramundos, sem uma niilista e obsessiva ocupação consumista, faz-se necessário a elevação do humano como ser de invenção e embriaguez, tendo como dirigente o dionisíaco espírito criativo da arte.

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