Considera-se o artista Brincante como um legítimo representante da “cultura popular”. A separação entre “cultura” e “cultura popular” é algo que cristaliza vários preconceitos. Distingue a última como um tipo de “fazer” desprovido de um “saber”, ou uma coisa “velha”, fruto da “tradição”, resíduo de uma gente em extinção. O termo “cultura popular” direciona para o passado, para um espaço perdido, para uma ruína que ainda resiste diante do fim inexorável.
Já o que designa “cultura” - em contraposição a sua designação como “popular” - aponta para um saber atualizado, abarrotado de conhecimento comprovado e necessário; nessa acepção estamos “antenados com o presente” e “preparados para o futuro”. Na maioria das vezes quando ouvimos dizer que “fulano tem muita cultura”, está se referindo a alguém que adquiriu títulos, escreveu livros ou possui notoriedade por sua “produção intelectual”. Não se trata aqui de uma “cultura qualquer” que se apreende ordinariamente no meio da rua. Esse “sujeito cultural” passou com certeza por um crivo epistemológico. Temos aqui determinado uma hierarquia do conhecimento, que estabelece relações de poder e mando. Inimaginável, por exemplo, vermos “Seu Reginaldo” (Mestre da Banda de Congo Amores da Lua, aqui de Vitória) dar uma aula numa Universidade. No máximo será utilizado como “objeto de estudo”. E objeto no sentido mais vil, utilitário, determinista e pragmático com que se utiliza pretensamente esse conceito na academia.
O artista brincante é aquele que destila causos, cantos, danças e mitos dos quatro cantos do Brasil, que dependem fundamentalmente de vivência, contato físico e da transmissão oral, que é o modo próprio com que os humanos criam seus signos e modos de vida, que vão se relacionar e identificar uma cultura ou seu modo próprio de se constituir numa coletividade. Hoje, com o chamado “progresso tecnológico” dos grandes centros urbanos, não precisamos mais desse contato. Estamos antenados, conectados, televisados, internetizados e globalizados. As identidades nos chegam via satélite (ou mesmo pelo correio, através do auxílio do dinheiro metafísico do VISA, do Mastercard, etc). Conversar com estranhos – ou mesmo vizinhos - é realmente muito perigoso e cansativo; além de que você agora foi alçado a categoria de “cidadão do mundo”. Temos então o bate-papo à distância, a educação à distância e até mesmo o sexo à distância. Não precisamos mais dar nem receber atenção de ninguém; tornamo-nos solitariamente auto-suficientes. Isso pelo menos é o que nossa sociedade - tecnológica e consumista - acredita e propaga.
O conhecimento do Brincante vem na contramão dessa corrente. As informações aqui chegaram através da velha parteira, do pedir uma xícara de café emprestado ao vizinho, das brincadeiras de roda e dos festejos e cantigas, do ato de dar uma caneca d`água ao passante eventual, da roda de cantoria em botecos, varandas e esquinas, das tendinhas e vendinhas de fiado, das rezadeiras e carpideiras, dos cantadores e bonequeiros, dos velórios regados a tira-gosto e cachaça (feitos nas próprias casas dos defuntos) enfim, de andanças, perambulações, estadias, olhares, apertos de mão, encontros, desencontros e despedidas.
O Brincante é esse artista que corre por esse “mundaréu de meu Deus”, vivendo, recolhendo, aprendendo e ensinando - com muita arte - esses saberes, dizeres e conheceres que o povo - ingênua e gratuitamente - passa tomando uma cachacinha da boa ou um cafezinho na caneca; ou ainda, pegando uma carona na beira da estrada e compartilhando um pedaço de pão velho com alguém que acabou de conhecer.
Essas histórias e fatos ficam marcados não apenas na “memória” – que é confundida muitas vezes como capacidade de descrição intelectiva - mas na corporeidade desse artista, ou seja, em sua totalidade como homem. O corpo do brincante esta carregado desses múltiplos contatos e vivências. As rugas na face, o suor que encharca a camisa velha e puída, o “cenário” rudimentar feito com materiais recolhidos ao longo dessa caminhada, são as provas mais contundentes de presenças e lembranças humanas que se atualizam e se vivificam durante o encontro com o artista Brincante.
O imaginário se funde com o real ao ser estabelecido uma cumplicidade durante o “brincar” cênico. Assim temos o privilégio de sentir a força desse brincar pulsante - ritualizado no encanto e corporificado na entrega - que torna a arte mais dilatada que a vida, pois esse encontro amplia sua dimensão significativa, afetiva e lúdica. O corpo do artista brincante é sua própria caixa de brinquedos e ele - por amor à vida e devoção à arte - faz questão de compartilhá-la com todos.
Comentários
Fiquei emocionada com a sensibilidade do conteúdo do seu blog.
Espero ter a oportunidade de ver esse trabalho de perto.
Imagino o número de desafios e ao mesmo tempo, quanta recompensa pode acompanhar os resultados.
Parabéns por reconhecer a influência do brincar, do popular, do lúdico, do cultural, na saúde das pessoas.
Abraço grande,
Vera Costa (Petrópolis)