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Berimbau 2 x O Acadêmico

Em maio último Antonio Dantas, coordenador do curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ao tentar justificar o baixo conceito alcançado no ENADE, afirmou que isto é devido “ao baiano tem baixo Q.I”. Afirmou ainda categoricamente que “o berimbau é um instrumento prá quem tem poucos neurônios, pois possui somente uma corda.”

A retórica empolada e cientificista de Dantas é um recurso largamente utilizado em nossos dias para justificar e explicar fatos e fenômenos em geral; e por força ideológica e midiática, ganha comumente contorno de verdade absoluta e inquestionável. A fala do Dr. Coordenador revela um ranço de pureza étnica vigente em nossa “elite”, que ainda determina os rumos do país e mantém firme nosso aviltante quadro de desigualdade e segregação social. O “especialista” é o maior porta voz e defensor da estrutura dominante.

Mas o que mais pode estar na raiz desse discurso? Para tentar entender um pouco mais claramente essa questão, deixaremos de lado o revide individual e citações de baianos ilustres, fazendo um esforço para situar a questão dentro de um horizonte de compreensão um pouco mais abrangente.

O oportunismo e a celeridade de Dantas em indicar prontamente a causa do fenômeno – livrando a instituição e a si próprio de qualquer responsabilidade - é a primeira coisa que salta aos olhos. Como estarão sendo utilizadas as verbas destinadas ao curso? Qual a estrutura da grade curricular? E esta, atende plenamente os estudantes ou é feita para satisfazer a comodidade dos professores? E estes, são em número suficientes para todas as disciplinas? São contratados por concursos legítimos e transparentes ou são indicados por um “colegiado de amigos”? São efetivos ou provisórios? Cumprem regularmente a carga horária de aulas? Os efetivos se dedicam realmente com exclusividade como determina a legislação? Temos aqui algumas questões que creio mereceriam ser respondidas.

Quem freqüenta os corredores das universidades públicas brasileiras sabe muito bem que ali estão consolidados muitos feudos e interesses particulares. Alguns profissionais não têm dimensão da responsabilidade social que lhes cabe e nem consciência da importância do ensino superior público num país como o nosso. Tornam-se acomodados e relapsos; comportam-se como se a universidade fosse uma extensão do quintal de casa; com essa apatia estão contribuindo com processo de mercantilização do nosso ensino.

Em segundo lugar temos mais evidenciado o aspecto racial. O processo escravagista nunca foi pensado com muita importância no Brasil. Foi suavizado por um romantismo racial e dissimulado através de eufemismos que ajudaram a construir a farsa de uma relação harmoniosa entre dominantes e dominados. A invenção das fagueiras e faceiras mulatas como arquétipo de sensualidade e cordialidade, é uma imagem que povoa o imaginário popular e esconde um artifício de dominação bastante difundido. Acho que muitos se lembram da famigerada marchinha que em dado momento dizia: “... mas tua cor não pega mulata, mulata quero o teu amor”. E todos cantavam alegres e inocentes.

O ideário dominante fez sempre alusão pejorativa ao fato de sermos uma sociedade mestiça. Segundo os adeptos da eugenia, esse fato nos torna um povo de segunda categoria, descuidado, preguiçoso, vagabundo e sem aptidão para o progresso. O texto “Sobre o óbvio” de Darcy Ribeiro constatou muito bem isso e acentua que sua própria ciência, a antropologia, “por demasiado tempo não foi mais que uma doutrina racista sobre a superioridade do homem branco, europeu e cristão”.

A resistência e relevância cultural dos descendentes afro, edificada com maior contundência na Bahia, deve com certeza ainda incomodar muito à elite pseudo-européia, que quer manter os negros em seu devido lugar, principalmente longe dos bancos escolares. E mais ainda das universidades, como bem explicita a querela em torno das cotas nas universidades públicas. Mas a cultura afro resistiu. Utilizou-se do sincretismo como estratégia para não perder sua religiosidade e sua origem; também rezou, dançou, cantou, comeu vatapá e acarajé, tocou tambores e - inteligente e sorrateiramente - fez soar o BERIMBAU!

Elevado como símbolo e determinação da resistência negra, o berimbau segurou - com sua única e tensa corda - toda dimensão de existência de um povo. Mas é preciso ter visão de mundo para perceber isso, e o cientificismo lógico - por vocação e pretensão de verdade e poder - não consegue estabelecer relação com o que está fora do âmbito de sua estreita e embaçada “racionalidade cognitiva”.

Podemos inferir que o berimbau está hoje para a Bahia como a cruz para o Vaticano, e assim como fez o pastor evangélico com a santa na TV, o ensandecido e fanático acadêmico viu-se compelido a desferir um chute no berimbau. O ilustre Doutor deve estar agora doente do pé, porque da cabeça parece que faz tempo.

Comentários

Bruno disse…
Pobre do que não sabe

que o berimbau é a alma da capoeira.

Belo texto, Fraga. Se não achar um problema, pus o seu blog como link no meu.

Um abraço
Bruno
Leonardo Machado disse…
CLAP! CLAP! CLAP!
Porra, Ferri! Se superou agora. O texto está muito bem escrito, rigoroso, porém leve, fácil de acompanhar. E no aspecto crítico, Fraga dá de 20 a 0.
Abração, brother.
Esse foi realmente estimulante.
Fraga Ferri disse…
Tranquilo, Bruno.
Obrigado e grande abraço.
Fraga.

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