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O que é isso, a "inclusão social"?



“O meu linguajar é nato
Eu não estou falando grego...”.
(Zeca Pagodinho)

“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro...”
(O Rappa)



O Brasil é uma "nação", não resta dúvida. Temos hino, bandeira, língua pátria e um certo “orgulho nacional” que se hipertrofia principalmente durante o período da copa do mundo. A tão propagada miscigenação étnico-cultural que teria forjado essa nação, não conseguiu eliminar o que lhe é mais próprio: contradições, diferenças e conflitos. A construção da “identidade nacional” deu-se a fórceps.

A hegemonia de um determinado modo de ser, da formação de uma ideologia e modelo de humanidade, não foi estabelecida - e continua sendo mantida - com tanta cordialidade e sensualidade como promulgam alguns. Aqui há conflito, guerra, resistência, luta, "pólemos" - como diriam os antigos gregos.. Na ocupação portuguesa e embate com os povos que habitavam esta Pindorama, já se estabeleceu o modus operandi próprio do dominador, que perpassara nossas relações comunitárias: massacre, aviltamento, humilhação e subjugação. É sob essa égide que foi erguida e conciliada a nossa “identidade pátria”.

A resistência dos povos que aqui habitavam deste sempre – devidamente empacotados sob a alcunha de “indígenas” – foi e, de certa forma, continua a ser feroz. Comparado analogamente com a construção dos Estados Unidos, esse povos - mesmo que precariamente - ainda conseguem ser identificados e possuem ainda alguma capacidade de incomodar o desenvolvimentismo capitalista. Vide os guaranis aqui nessas abençoadas terras espírito-santenses e sua peleja com a poderosa e implacável FIBRIA/Aracruz Celulose, que é devidamente assessorada pela grande e coaptada mídia local. Apesar do poderio econômico e da propaganda maciça, desqualificando-os e criminalizando-os, eles conseguiram, através de luta e esforços próprios (apoiados em alguns casos por instituições não-governamentai) resgatar e manter alguma terra e dignidade.

Também temos um outro exemplo próximo que é o das comunidades negras. Os quilombolas, quando pareciam fazer parte apenas de uma narrativa historicista e romântica, distante no tempo e no espaço, ressurgem com força e determinação. A saga negra no Brasil colonizado foi e continua sendo perpassada pelo binômio violência e resistência, ao contrário do que se instituiu principalmente pelo sensualismo romantizado explícito sobremaneira na "invenção do mulato", como alguns criticam, levada a cabo por Gilberto Freyre.

Essa relação conflituosa eclode hoje na guerra aberta e exacerbada – exposta principalmente no Rio de Janeiro – nas periferias dos grandes centros urbanos. O discurso desenvolvimentista inchou e alimentou uma massa de descontentes e excluídos. A partir disso desenvolveu-se – como muitos inferem - o que reduzida e precipitadamente podemos identificar como “cultura periférica”. Creio aqui termos uma abordagem típica do que Merleau-Ponty identificou como “pensamento de sobrevôo”.

O pensamento de sobre vôo instituído - principalmente pela turba pretensiosa dos “especialistas” - bate suas asinhas afoitas fazendo inferências e pretendendo determinar a “constituição da subjetividade da nação brasileira”. Mas é aí - como diz sabiamente o dito popular - que "a porca torce o rabo". No rastro da propagada e alimentada “inclusão social”, existe uma visível hierarquia que nega legitimidade e dignidade ao universo cultural das chamadas “comunidades periféricas”. Para ver algo como periferia faz-se necessário uma visão central; então, nesse contexto, inclusão já pressupõe, de ante-mão, negação.

Existe ainda uma outra vertente perversa levada a cabo pelos meios de comunicação, com evidente viés mercadológico, que pasteuriza e embala pra consumo próprio, as manifestações constituídas nos quilombos urbanos. O programa “Central da Periferia”, da Rede Globo, foi um dos exemplos crasso disso. Encobria, como outros fizeram, a desigualdade e negava a aviltante concentração de renda em terras tupiniquins, propagando um discurso que coloca a solução das diferenças sociais no terreno do individual ou de uma coletividade dócil e subserviente, uma solidariedade de rebanho. É o modelo exemplar: “Eu cheguei até aqui, você também pode”. Ou ainda: “Vamos unir forças e mudar nossas vidas”. Sem, obviamente, colocar em pauta a questão da desigualdade econômica, da miséria e  da pobreza como projeto político de uma oligarquia instituída historicamente e que renova seu "modus operandi" com extrema eficiência, diga-se de passagem,  regularmente

A negação da pluralidade, das diferenças sociais e das diferentes constituições culturais presentes no território brasileiro, tem o famigerado DEUS MERCADO como gerente e a televisão como difusora. Nos últimos trinta anos as redes de televisão – tendo como modelo a empresa da família Marinho – realizaram uma verdadeira limpeza étnica no Brasil. As novelas e telejornais instauraram um país sem sotaque, sem diversidade e com gestual condicionado. As crianças esquálidas e famintas do nordeste, por exemplo, tinham vergonha de cantar “Mulher Rendeira” mas sabiam, na década de 80, de cor e salteado, todas as músicas do programa da famigerada  Xuxa. A "xuxalização" das nossas crianças, tendo o erotismo e o consumismo precoces como carro-chefe, foi um fenômeno marcante nesse período, que tem até hoje - como diria Gadamer - sua "história de efeitos".

Também a constituição da globalização como ideologia absoluta reinante, instaura uma condição onde todo humano se determina e se guia pela lógica capitalista do Mercado. Fora do Mercado só há danação. Quem não se atualizar, falar línguas, conhecer informática, vestir terno, cortar os cabelos, fazer as unhas, está fora. O Mercado - essa entidade que paira soberana sobre nossas cabeças - acorda todo dia de mau humor. Olha o mundo em seu voo soberano, elimina alguns milhares diariamente, enriquece outros em lógica inversa e depois, satisfeita, retorna ao seu bosque sagrado e protegido para adormecer tranquilamente. No dia seguinte retorna para cumprir novamente sua vil missão.

Mas em meio a isso tudo e apesar da força e capacidade destrutiva do modelo globalizante, existem guetos de resistência, de propagação de singularidades, de constituições humanas e suas forma de significações culturais, que tem nas manifestações artísticas seu pilar de sustentação. Daí podemos considerar como problemática e pretensiosa a instauração de uma subjetividade ou identidade cultural do povo brasileiro. Assumir essa impossibilidade é estar no âmbito da possibilidade de poder se relacionar com os diferentes modos de ser das diversas composições humanas,  que habitam esta Pindorama Brasileira, já não tão idílica assim, mas com uma gente muito criativa, expressiva e sedenta de reconhecimento e dignidade.

Comentários

Leonardo Machado disse…
Excelente texto, Fraga. Não vou comentar pontualmente pq seriam apenas ratificações. Acho q vou pegar carona no tema e postar o meu tb...
abraço
e passa no meu blog, pô!

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