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As inflexões sobre o "Vir-a-Ser"

Um dos sentidos possíveis para a palavra grega aisthesis (estética) seria inspirar, trazer o mundo para dentro, senti-lo, revolvê-lo ou, até mesmo, comê-lo; como fazia Cronos com seus filhos, tentando evitar uma possível ameaça futura. E parece ser esse o espírito movente da exposição “Vir-a-Ser” de Ana Lúcia Gonçalves. Através da arte busca-se sempre, de alguma forma, um desvelamento do seu tempo/espaço vivente; tenta-se dissolver a concretude emoldurada do real e remontar, em sua plasticidade residual, uma estrutura significante. Mas ao tentar compreender - e dar sentido efetivo as suas vivências – depara-se com seus próprios dilemas, angústias, zelos, desvelos…

Nesse esforço de (re)constituir-se ela, como artista, tem que inexoravelmente debruçar-se sobre o emaranhado novelo de dúvidas, perdas, contradições inerentes ao próprio processo de viver; becos e vielas - linhos e desalinhos existenciais. Inspirar de novo seu próprio mundo, degustar poeticamente suas crias, reassumir com coragem seu próprio, reconduzir com ternura seus propósitos, dilacerar – em sua fantasmagoria estética – os compostos condicionantes do mundo em sua própria carne. Sim, porque é no seu corpo que está escrito o seu tempo; e é também com o seu corpo - em seu movimento de doação e devoção à arte – que há uma ocupação significativa do seu espaço/mundo; arte/artista se perfazem em relação mútua na mesma dimensão; não há onde se colocar, nessa dimensão, a dicotomia sujeito/objeto cartesiana. Por isso temos aqui corpos presentes; corpos não como máquinas, mais mitologicamente constituídos; corpos em diversas nuances e visadas; corpos como “inspirações” flutuantes que buscam se concretizar afetivamente: vir existencialmente à tona.

Assim, como nas projeções de uma maternidade precoce, a sua arte transcende - envolta em um estorvo de rara e singela humanidade - para além da técnica, do criticismo e do hermetismo conceitual. Surge, então, dos emaranhados de fios, das perfurantes agulhas, da acidez das tintas, da receptividade do tecido e da persistência insólita da cera, os signos de sua luta, os resíduos de suas angústias, os sonhos de sua vida, os indícios do seu “Vir-a-Ser”.

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O meu muito obrigada sempre!!!

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